Diário das pequenas descobertas da vida.
No século I A.C. viveu um conhecido arquitecto romano,
Marcus Vitruvius Pollio. É conhecido pelas suas obras e especialmente por ter editado a melhor fonte para entender a arquitectura romana, a sua obra em 10 volumes
De Architectura. Usando os seus conhecimentos como arquitecto e constructor (bem como usando outras obras sobre arquitectura) descreveu com exactidão edifícios existentes no seu tempo, bem como valiosos conselhos sobre construção e arquitectura.
Vitruvius é também o frequentemente desconhecido autor de uma das mais divulgadas histórias sobre o famoso Arquimedes. A tradicional imagem que se tem sobre o talentoso e multi-facetado Arquimedes é a que envolve a sua corrida pela cidade nu enquanto gritava «Eureka! Eureka!» (Descobri! Descobri!)
A história por detrás da sua corrida é também conhecida e foi contada originalmente por
Vitruvius. A história envolve o Rei de Siracusa Hiero II. O Rei desta cidade (onde vivia Arquimedes) entregou a um ourives uma quantidade de ouro para que este fizesse uma coroa (a palavra
corona significa, em latim, uma coroa de louros, como a que se associa aos imperadores romanos) para colocar na estátua de um deus ou deusa. Mas o Rei suspeitou que o ourives tinha ficado com parte do ouro entregue e a tinha substituído por uma menos preciosa prata (quem sabe se não foi por «sinais exteriores de riqueza»...?)
Para isso, pediu ao mais distinto e inteligente homem da cidade, Arquimedes, para que descobrisse uma forma de determinar a verdade sem danificar a coroa, visto que esta era preciosa e uma oferta a um deus (ou deusa). Reza a lenda que Arquimedes foi para casa a matutar no assunto. Não chegando a encontrar imediatamente uma solução foi tomar um banho. Ao mergulhar na banheira, constatou que o seu peso fazia deslocar a água. Percebeu então que esse deslocamento era devido ao seu peso e de que diferentes pesos deslocariam quantidades diferentes de água. Como a prata tem um peso diferente do ouro, tinha encontrado uma forma de determinar se a composição da coroa era a que o ourives afirmava: mergulhando em água uma quantidade de ouro igual à entregue e noutro recipiente a coroa, os dois teriam de deslocar a mesma quantidade de ouro. Não o fazendo tinha havido fraude. Com esta descoberta Arquimedes terá ficado tão entusiasmado que saiu do banho a correr, ainda nu, a gritar «Eureka! Eureka!»
~ Muito inteligente esse Arquimedes!É amplamente reconhecido o génio matemático e científico de Arquimedes (graças às suas invenções o exército romano foi mantido fora das muralhas da cidade. Algumas dessas invenções incluem a utilização de espelhos parabólicos para focar a luz do sol sobre os navios romanos, dessa forma incendiando-os; a criação de alavancas enormes que levantavam no ar os barcos romanos e os deixavam cair impotentes sobre os rochedos da costa; e outras mais.)
Apesar disso a história contada por
Vitruvius tem tido a sua veracidade refutada por vários críticos (e críticas). A mais significativa delas é, no meu entender, a seguinte:
A maior coroa de ouro descoberta do tempo de Arquimedes é (oriunda da
Vergina) tem um diâmetro exterior de 18,5 centímetros e uma massa de 714 gramas, apesar de algumas das suas «folhas» se terem perdido.
Semelhantes dimensões e pesos não teriam deslocado suficiente água para determinar sem instrumentos de precisão (desconhecidos na altura) a diferença na sua composição.
A coroa tinha uma forma aproximadamente circular. O diâmetro era 18,5 cm logo o seu raio era 18,5/2 = 9,25 cm.
Pela fórmula da área de um círculo (A = πr
2) e usando um valor aproximado de π = 3,14 a área da coroa seria A = 3,14 x 9,25
2 = 3,14 x 9,25 x 9,25 =
268,66625 cm2).
Ouro: Como o ouro tem uma densidade de 19,3 g/cm
3, 714 gramas teriam um volume de 714/19,3 = 36,995 cm
3. (Pela regra de 3 simples, se há 19,3 g num cm
3, há 714 g em x = 36,995 cm)
Esta quantidade de ouro faria subir o nível da água de um recipiente capaz de a conter em 36,995/268,66625 =
0,1377 centímetros.
Prata-Ouro: Suponha-se agora que o ourives substituiu 30% do ouro (714x0,30 = 214,2 gramas) por prata (uma maior quantidade puderia levantar suspeitas ao nível da coloração do objecto).
São
214,2 g de prata e 714 - 214,2 =
499,8 g de ouro.
A prata tem uma densidade de 10,6 g/cm
3 e, portanto, a coroa com
30% prata - 70% ouro teria um volume de 214,2/10,6
(prata) + 499,8/19,3
(ouro) = 20,21 + 25,9 = 46,11 cm
3.
Tal coroa teria feito subir a água do recipiente em 46,11/268,66625 =
0,172 cm.
A diferença entre a água deslocada pela coroa prata-ouro e a água deslocada pela coroa de ouro seria de
0,172 - 0,1377 = 0,0343 centímeros ≈
0,3 milímetros.
É uma diferença demasiado pequena para ser medível a olho nu ou sem recorrer a instrumentos mais precisos, desconhecidos na altura, bem como a impossibilidade de detectar fontes de erro na medição como a tensão de superfície da água, bolhas de ar presas às reentrâncias das folhas de ouro da coroa,
et caeteraTodos estes cálculos perante algumas suposições. O deslocamento de água seria inferior a 1 milímetro se o peso da coroa fosse inferior ao da de
Vergina (peso ou diâmetro). Se o ourives tivesse sido mais prudente e a quantidade de ouro substituída fosse inferior a 30% a diferença seria bem menor.
Mesmo que a coroa fosse maior e pesasse 1000 gramas ou tivesse um diâmetro de 20 cm a diferença seria apenas de 0,4 milímetros!
Uma outra técnica teria de ter sido usada por Arquimedes para resolver a situação.
Provavelmente
Vitruvius não se sentiria completamente à vontade com os números (ou suspeitasse que os seus leitores não fossem) e por isso criou esta história, que apela ao sentimento de verosimilhança sem afugentar com contas.
É possível imaginar uma outra técnica que usa ambas as Leis de Arquimedes (O deslocamento de fluidos pela imersão de volumes e a sua Alavanca.
Nessa técnica a coroa seria suspensa numa balança com o equivalente em ouro.
O conjunto é imerso em água.
Se a balança se mantiver equilibrada a coroa tem a mesma densidade e é de puro ouro.
Se a balança pender para o ouro a coroa é de uma liga de ouro com um metal mais leve.
Com este método a diferença de volume entre a coroa com 714 gramas (70% ouro-30% prata) e o seu equivalente em ouro é aproximadamente 12 g, perfeitamente ao alcance das balanças do tempo de Arquimedes.
Com este método a questão das fontes de erro (tenção de superfície na água, reentrâncias na forma,...) desaparecem.
Si non est uerus est bene dito.No título «A coroa de ouro»