Uma das concepções mais erradas que se pode ter acerca da Ciência é aquela em que se questiona a validade de determinada linha de investigação quando há outros problemas mais prementes a resolver (na concepção de quem profere a frase). «Porque andam a investigar o ciclo de vida das minhocas quando ainda não há cura para o cancro, para a sida ou mesmo para a constipação?» «Porque estudar Matemática para além de saber fazer contas?» «Porque se gastam milhões em projectos espaciais com tantos pobres que há no Mundo?» «Porque andar a estudar as estrelas quando há tantos problemas na Terra a resolver?» Este tipo de perguntas, mesmo quando feitas com um espírito de altruísmo e preocupação genuína com os problemas que o Mundo enfrenta, revela ignorância e uma visão limitada e redutora que só por si prolonga, quando não agrava, os problemas que deseja valorizar. Várias foram as ocasiões em que, na História da Ciência, resultados e investigações num campo aparentemente de pouca utilidade são usadas para grandes progressos técnicos de melhoria da vida das pessoas. Uma delas prende-se com um electrodoméstico que é, hoje em dia, tão natural numa cozinha que poucas são as pessoas que não têm um.
Em 1946, durante experiências relacionadas com um projecto sobre radares, o Dr. Percy Spencer estava a estudar um novo tubo de vácuo chamado magnetrão. Após as experiências que realizou e em que activou o tubo (concebido para criar um campo magnético que geraria micro-ondas), reparou que a barra de chocolate que tinha no bolso tinha derretido. Intrigado por esse derretimento, O Dr. Spencer colocou, no tubo, alguns grãos de milho. Afastou-se um pouco e ficou a observar. Num instante os grãos de milho começaram a estalar e o laboratório encheu-se de pipocas acabadas de fazer. (Para mais sobre micro-ondas ver: • Está frio aqui em que se fala da temperatura; • Lux mundi em que se fala do espectro electromagnético; • Loqui longinquitate sobre as micro-ondas emitidas pelo telemóvel;) No dia seguinte, colocou um ovo ao pé do magnetrão. Em breve o ovo começou a tremer e a agitar-se. Pouco depois o ovo rebentou, espalhando gema e clara muito quentes pela sala. Ligando estes 3 acontecimentos, o Dr. Spencer conjecturou que, se as micro-ondas emitidas pelo magnetrão tinha aquecido tão rapidamente o ovo, também deveria fazer o mesmo a outro tipo de alimentos. As experiências começaram. Construiu uma caixa de metal com uma abertura através da qual emitia micro-ondas. A energia que entrava na caixa não conseguia sair, o que aumentava o campo electro-magnético dentro da caixa. Quando colocava comida dentro da caixa e activava o emissor de micro-ondas, a temperatura da comida aumentava rapidamente e era cozinhada. Nasceu o conceito do forno micro-ondas.
Em 1947 a empresa para a qual tinha feito investigações no campo dos radares comercializou o primeiro forno micro-ondas. Eram máquinas enormes e caras. Um dos primeiros que foi comercializado tinha perto de 1,70 m de altura, pesava 340 quilogramas e custava $5000 (o que, à taxa actual de conversão dólareuro, é mais de 6000 ou seja é mais de 1 200 contos). Além disso, como o magnetrão tinha de ser arrefecido, era necessário instalar tubos de água para que esta o arrefecesse. (Estranho conceito para as mentes actuais, ser necessário ligar um tubo de água ao micro-ondas...) A recepção inicial foi desapontadora. Mas depressa o frio inicial dos consumidores foi aquecido por avanços tecnológicos que diminuiram o tamanho, o peso e o custo do micro-ondas. Além disso, foi criado um magnetrão que era arrefecido com ar, pelo que deixou de ser necessário a instalação das tubagens para a água. (É por isso tão importante deixar as saídas de ar do micro-ondas livres e que o micro-ondas esteja minimamente afastado de fontes de calor.)
A procura era a de tornar o forno micro-ondas apetecível e acessível ao grande público. Uma primeira demonstração, ainda de 1947, era a de um que custava entre $2 000 e $3 000 e ocupava o mesmo espaço que um frigorífico. Em 1952 um modelo de uso doméstico foi comercializado com o custo de $1 295. Em 1967 foi criado o primeiro forno de uso doméstico, com um preço inferior a $500 e mais pequeno e seguro do que os anteriores modelos. À medida que as vendas de fornos micro-ondas aumentavam também subiam as preocupações infundadas e as crendices associadas ao uso de micro-ondas. O conceito de um forno que funcionava emitindo radiação assustava as pessoas, que erroneamente associavam a palavra a «nuclear» (convém lembrar que a luz visível também é uma radiação, as ondas de rádio também). As micro-ondas, como visto em Loqui longinquitate são não-ionizáveis: não têm energia suficiente para alterar a estrutura genética, apenas agitam os corpos com que chocam, aquecendo-os. Uma das dúvidas que se pode ter sobre os fornos micro-ondas é a razão pela qual, sendo a porta dos mesmos revestida com buracos circulares, as micro-ondas não saem e a luz projectada pela lâmpada no interior do forno sai. Se ambas são radiações, porque saem umas e não saem as outras?
Isto tem a ver com duas características das micro-ondas: estas são reflectidas por superfícies condutoras (ou seja, pelas quais a electricidade é facilmente transportada, como os metais), da mesma forma que a luz é reflectida por objectos polidos (como os espelhos). Além disso, o comprimento de onda das micro-ondas é maior do que o diâmetro desses buracos redondos na porta do micro-ondas. As micro-ondas do forno homónimo têm um comprimento de onda de mais de 30 centímetros. (O comprimento de onda é a distância entre duas ondas consecutivas). Os orifícios na porta dos fornos micro-ondas têm um diâmetro inferior a 2 milímetros (como pude pessoalmente verificar). Dessa forma, as micro-ondas não passam: são maiores do que o diâmetro dos orifícios. Mas a luz visível tem um comprimento de onda entre os os 400 nanómetros (luz violeta) e os 700 nanómetros (luz vermelha). Assim a luz passa: é bem menor do que os mesmos. (Como visto em Luz mundi, o nanómetro é 1 milhão de vezes menor do que um milímetro. Assim as micro-ondas dos fornos são 150 vezes maiores do que os orifícios dos fornos, logo não saem. Mas os orifícios das portas são entre 200 milhões de vezes e 350 milhões de vezes maiores do que a luz visível, logo esta sai.)
O símbolo que inicia o artigo é o Bastão de Asclépio/Esculápio, um antigo símbolo grego associado à cura de doenças através da medicina. Asclépio (que foi adoptado pelos romanos como Esculápio) era o Deus da Cura e da Medicina que foi ensinado pelo centauro Chiron («chiron» significa mão em grego. Daí o termo «quiromância», a suposta capacidade de ler o futuro nas mãos de alguém). O símbolo é constituido por uma serpente (desde sempre associado à cura e ao rejuvenescimento por mudar de pele todos os anos) enrolada à volta de um bastão (símbolo de autoridade e portanto digna de um Deus). Há também quem sugira que não se tratava originalmente de uma serpente mas de uma sanguessuga, que eram usadas para extrair sangue a um paciente em tempos antigos e era em seguida retiradas usando um bastão. Uma das 3 filhas de Asclépio chamava-se Panaceia «tudo-cura»... No título «Micro-ondas»